O que importa é um título, não é?

Senhor médico, que tal se invadissem o seu consultório no posto de saúde e dissessem para o seu paciente "ignore tudo isso que esse cara tá falando que eu vou decretar que você não está doente"?
Ou você, colega educador se, no seu malabarismo pedagógico, recebesse um interventor em sua sala de aula que afirmasse para todos os seus alunos que eles estariam aprovados, independentemente do conteúdo ou avaliação?
Sim, profissional de qualquer área, se o seu domínio técnico, científico ou prático, fosse desqualificado por decreto?

Parece absurdo isso né! Mas é real no Estado do Pará!

Há alguns anos a Assembleia Legislativa do Pará e a Câmara Municipal de Belém têm procedido de forma arbitrária e ilegal, de forma acintosa com os profissionais de cultura, desconsiderando os instrumentos legais, que estabelecem os limites para a atribuição de valor de preservação, distribuindo títulos de tombamento e declarações de reconhecimento de valor imaterial como se fossem santinhos à véspera de eleição!
A mais recente gracinha da ALEPA, com a anuência declaratória do Governo do Estado foi dar título de patrimônio imaterial a sete times do futebol paraense. Parece besteira a revolta? Retorne às primeiras linhas do post e ponham-se no lugar dos profissionais de cultura deste estado. É pouco? Então vamos entender o que seja um patrimônio imaterial.

Não vou aprofundar em conceitos como paisagem cultural para facilitar a compreensão, digamos assim que seja uma explicação primária para tentar garantir que seja BEM entendido.
O patrimônio cultural divide-se em dois grandes segmentos: bens materiais e imateriais.
Os bens materiais são aqueles que podemos pegar, há materialidade, como um edifício, uma obra de arte, um objeto que, por seu valor excepcional de qualidade estética, de referência histórica ou de risco de desaparecimento, mereçam ser preservados. O tombamento, eventualmente, especialmente sob os riscos que os bens materiais sofrem de seu desaparecimento por especulação, roubo ou algum outro tipo de dano físico que possa sofrer, podem ser passíveis de uma ação impositiva, como um decreto, que pode garantir outros procedimentos legais e administrativos. O bem material, atingido em sua essência - a materialidade - perde seu valor e, por isso a restauração é procedimento que se deve evitar, devendo-se primar pela conservação, por seu turno.
Os bens imateriais representam o caráter intangível da Cultura, e são registrados (nunca tombados, tombamento é para bem material), para que se garantam as características identitárias de uma sociedade. No conjunto de bens culturais imateriais estão os saberes tradicionais, os modos de fazer, as formas de expressão, celebrações, costumes, tradições enfim, onde temos os mesmos critérios de preservação patrimonial: garantir que o conhecimento ancestral seja mantido no cerne da sociedade. A diferença do registro é que ele depende de uma análise socioantropológica mais profunda para que possam ser considerados aspectos invisíveis, além de buscar garantir a manutenção do conhecimento dos mestres de ofícios, assim como seu instrumental próprio. Os bens imateriais são dinâmicos e, portanto, não podem ser particularizados.
Carimbó, Círio, brinquedos de miriti de Abaetetuba, os mestres rabequeiros de Bragança, os carpinteiros navais ribeirinhos, a maniçoba são exemplos de bens culturais imateriais que podem e devem ter proteção e reconhecimento de uma política de preservação cultural. Não se particulariza um bem cultural imaterial, justamente porque eles fluem e são ressignificados no corpo da sociedade: pode se reconhecer o mestre Fulano ou a forma tal de fazer determinada receita, mas quando há o registro ele atende ao universo da produção cultural manifesta naquele registro: inclusive os que surgirão.

Definitivamente não cabe registro a times de futebol nem a aparelhagens! Não possuem o fator diferencial que a cultura de um lugar exige, não representam a tradição de um povo, não podem ser particularizados em aspectos locais (visto que obedecem regras que estão além de sua própria dinâmica), não é composto de mestres-de-ofício nem detentores tradicionais de conhecimento, são constituídos em outra rede de relações da sociedade. Cabe estudo, cabe pesquisa, cabe estímulo em suas atividades, cabe até declaração de utilidade pública (e todas as benesses que lhe são associadas), mas não o registro! Muito menos o tombamento!

Será que, no meio da minha indignação, consegui me fazer entender?
Se não consegui, ouçam com atenção e calma os profissionais de Cultura, os produtores culturais, os mestres, os babalorixás, os amos, os artesãos...

E lá vão os políticos brincar de dar título ao futebol paraense... Façam-me o favor! Valorizem as expressões de cultura, a educação, o esporte e os títulos, todos, virão por consequência.

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