Não é céu

"O inferno dos vivos não é algo que será; se existe, é aquele que já está aqui, o inferno no qual vivemos todos os dias, que formamos estando juntos. Existem duas maneiras de não sofrer. A primeira é fácil para a maioria das pessoas: aceitar o inferno e tornar-se parte deste até o ponto de deixar de percebê-lo. A segunda é arriscada e exige atenção e aprendizagem contínuas: procurar e reconhecer quem e o que, no meio do inferno, não é inferno, e preservá-lo, e abrir espaço" (Ítalo Calvino, Cidades Invisíveis)
Hoje começa a exumação.
Mexerão em mortos, alguns até insepultos ou incorruptos, como alguns santos, mantidos em vitrines para se garantir a visibilidade de sua degradação ou para que se pesem os milagres. Passarão por necrópsia, os natimortos, os assassinados, os abortados e as vítimas de abandono. Estes últimos, especialmente, serão mais poupados, claro, afinal, quem assume o crime e o desleixo?
Sob o silêncio de muitos ecoarão discursos em coro uníssono que não levarão à ressurreição, mas a mais um apedrejamento injusto, um linchamento retórico de uma população que apenas repetirá o alemão ou italiano de uma grande ópera que não os representa. Haverão carpideiras que chorarão sentidas, posto que receberão seu soldo no fim da cena. Àqueles que de fato sentem a dor se indignarão e serão motivados pelo lado esquerdo do peito e do cérebro, tenderão às paixões e, de certa forma, acabarão perdendo a razão. Aos coveiros de plantão caberá apenas o ofício de escavar os ossos, revelar escombros, dispor em nova embalagem os restos.
Cabe o alerta, para quem não entendeu: estou falando do segundo turno da eleição em Belém.
Hoje, já cedo, comecei a receber mensagens que levantam todos os erros do mundo, atribuindo ao Edmilson Rodrigues e sua gestão. Do que fez, do que não fez, do que deixou pela metade, pelo que nem era sua responsabilidade... Fácil levantar fatos e transformar em retórica, de uma gestão de 20 anos atrás, num país sem memória e numa cidade em constante renovação. Difícil justificar o que está a olhos vistos. Difícil mostrar a desconstrução de uma cidade, os abortados e abandonados dos últimos 12 anos! Mais difícil não se indignar com determinadas coisas que serão ditas.
De ontem pra hoje só vem a pergunta: e agora? Agora é ter calma, porque, como ensinou o meu treinador de boxe, a força do atacante tem que ser usada a favor de quem é alvo. Esquiva dos golpes, quando for mais forte e deixa o oponente cair.
Quem sabe o que Belém já foi e o que é hoje acredita que não pode seguir o mesmo rumo dos últimos quatro anos, essa (di)gestão municipal (isso para não somar com os outros oito!).
Seja o que for, será difícil, como é difícil reenterrar os já falecidos. Belém é, atualmente, um grande cemitério de sonhos e projetos mortos, porém, temos como escolher: viver no inferno ou acreditar numa salvação mínima, mesmo que leve Belém a um purgatório.

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