Documentos, registros e memórias

Hoje chorei muito. Bateu a saudade daquilo que nada no mundo trás de volta: a troca de experiências, o aprendizado, o convívio, o fazer-junto... Não que eu não soubesse, mas identificar o quanto herdei de meu pai e o quanto, por genética ou osmose, a Catarina tinha dele: gosto pela música, pelo desenho, pela escrita e pela ciência, tudo junto. E a eficiência quase obstinada pela busca de resultados.

Meu irmão, responsável pelo acervo da família, tem escaneado fotos, o que tem sido muito interessante. Mas hoje ele mexeu em terreno delicado: escaneou alguns dos desenhos do meu pai. Fui reconhecendo nos seus traços os traços da Catarina, na sequência de vários estudos as lembranças de estar ao seu lado apreciando a mesma paisagem da Lagoa de Araruama, o tom azul-esverdeado (o mesmo que a FIAT resolveu batizar a cor do carro que meu pai comprou após a série das Variants - verde e amarela - que vieram após o heróico fusquinha azul escuro). O Verde Araruama da garrafa que o querido Raphael Diaz trouxe com água, areia e conchinhas...

Não tenho um desenho sequer, ainda desconfio que alguns que estão atribuídos ao velho Paulo Cesar de Campos foram feitos por mim, ao seu lado, assim como eu ajudei a construir algumas de suas obras em palitos de fósforos, ouvi suas conversas com o amigo Murilo sobre Arte, lembro de cada museu e espetáculo que ele me levou. Nunca vou esquecer a música do Dragão da primeira peça de teatro que assisti no MAM-RJ, embora a letra me falhe.

Meu pai era muito esquivo, mas nunca deixou de ser verdadeiro. Era através da música e da arte que ele se revelava com mais transparência. Era nos desenhos que ele punha suas referências, registrava suas escolhas e seu ponto de vista. Os desenhos, se eram forçados à perspectiva, apresentavam o seu olhar superior, sempre muito acima de tudo, quase distorcida. Não era uma perspectiva real, era seu modo de ver o mundo. Mas ao desenhar a minha mãe a faz com leveza, poucos traços, incapaz talvez de realmente absorvê-la: ele não lhe era superior, e sabia disso.

Sei qual é o estilo do Seu Paulo, estas flores são. Eram do jardim da frente da casa, onde perdíamos nossos brinquedos e bichinhos de estimação. Não importava o todo do desenho, mas o contraste das cores e formas. E essas plantas eram, juntamente com as árvores de extremosas, com flores de todas as cores (que, por crença popular, condenavam as mulheres solteiras da casa a continuar sozinhas) a representação dos jardins da nossa infância. Desenhá-las era, simbolicamente, desenhar todas as cores dos canteiros.

A distorção da perspectiva era também por culpa do astigmatismo (ele tirava o óculos pra desenhar, muitas vezes) e um traço leve de manchas e traços. Não era de muitas definições (tô falando do desenho, mas não só), sempre deixava subentendido alguma coisa. Gostava de fazer vários estudos do mesmo tema, observar por vários ângulos , como a série de desenhos e estudos do vaso espelhado com a renda de linha do Paraguai. Ele era um cientista, um pesquisador, firme no propósito de repetir o experimento ao infinito, não descartando aquele que não produziu o resultado satisfatório, mas somando dados.

Era um observador, há muito exercitava o olhar, quer nas fotografias que, em princípio, ele mesmo revelava em um laboratório caseiro (infelizmente não vivi esta época) quer na fase seguinte, depois de tanto brincar com a manipulação da luz sobre o papel fotográfico, registrando tudo em diapositivos (sim, nosso grande álbum de família é uma coleção de slides). As suas imagens eram fotográficas, mas também se apropriava do momento fotográfico para desenhar, como o ipê amarelo da antiga estrada para Búzios, por onde passamos algumas vezes no fusca, ou o emolduramento do ângulo do Forte Reis Magos, por onde ele passou com a mamãe a caminho de Belém, para comemorarem suas bodas de prata. Seus recortes temáticos construíam o conjunto de suas referências.

Até agora poderia estar citando a Catarina, mas existe uma diferença no desenho do meu pai para o da Catarina. Meu pai não era um bom retratista. Ele não se importava em traduzir a realidade em todos os aspectos físicos, registrar detalhes. Isso era uma obstinação da Catarina. Talvez agora eu consiga entender as diferenças entre o avô e a neta: a vivência, a necessidade de absorver o mundo no máximo de perfeição, em detalhes, enquanto o velho já se importava só com a essência, a impressão que as coisas deixavam, o fugaz, o traço, o gesto. Meu pai era meio impressionista, gostava de traços rápidos, queria pegar "o espírito da coisa", não necessariamente a precisão do momento ou objeto em si. E isso se refletia também no seu gosto musical: por isso ele gostava mais de Wagner, Liszt e Mussorgsky, e não gostava de ópera, que é muito narrativo e literal. Gostava do que provocava a imaginação, a referência, o sentimento, mais do que o objeto.

Chorei muito hoje por, entre outras coisas, entendendo o meu pai, tendo vivido e aprendido tanto sobre ele, entendendo do seu estilo de registrar e o mundo, ver no meio de seus desenhos um retrato: meu. E da mesma forma, sem os desenhos como documento, mas como registros, tenho as lembranças, a memória, o fato, a vivência, por mais que se queira compartilhar, são minhas e de mais ninguém!

Comentários

Paulo Mauricio disse…
Sensibilidade à flor da pele.
Saudades dos velhos e acrescido da manteiga que é seu irmão,quase causa uma enchente em Cabo Frio.
Lindo texto como sempre, sendo que este toca fundo a saudade e doi muito mesmo.
Beijo
Paulo Mauricio disse…
Sensibilidade à flor da pele. Acredita que a manteiga do seu irmão quase causa uma enchente em Cabo Frio?
Lindo texto, palavras que tocam fundo no coração e enchem de saudades.
Beijão

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