Palácio Velho e marco fálico

Num desses dias, um amigo me marcou em uma postagem do Facebook que falava da "primeira prefeitura" e do marco fálico que ele possui anexo, bem na aresta, na esquina da Rua Doutor Assis com Travessa Dom Bosco. A postagem dizia respeito ao Palácio Velho, bela construção colonial de propriedade da Prefeitura de Belém e usufruto do Colégio Salesiano do Carmo. Há um equívoco primário de indicar o edifício como "prefeitura" (estrutura administrativa que inexistia no tempo do Capitão-Mor do Grão-Pará Bento Maciel Parente), que torna-se palatável para a compreensão de ser o Palácio Velho a residência e centro administrativo da nascente cidade de Belém, fazendo as vezes do que entendemos hoje como prefeitura. Essa gestão estava limitada à primeira légua patrimonial concedida por carta de sesmaria de 1627 que, contudo, só foi demarcado seu limite em 1703.

A relação entre as posses concedidas pela carta de doação e sesmaria concedida à Câmara de Santa Maria de Belém do Grão-Pará por Francisco Coelho de Carvalho, Governador da Província - a primeira légua patrimonial - e a gestão do território são inequívocas.

A demarcação desse território, feita inicialmente em madeira, conforme registra Ernesto Cruz em seu livro Monumentos de Belém "fora talhado em 'pau de girau' - tendo escrito em uma das faces a palavra REY", no início do século XVIII, certamente ruiu com o tempo, tendo sido substituído pelo marco em pedra que se encontra deslocado de seu ponto referencial: o cruzamento das atuais avenidas Almirante Barroso e Doutor Freitas. A referência tomada para a inserção do marco em madeira, posteriormente substituído pelo em pedra de lioz foi o antigo caminho do Maranhão, aberto por Pedro Teixeira nas primeiras horas da conquista desse território. A tradição romana dos marcos miliares era bem conhecida em Portugal, e a sua função de marcação da milha nas estradas romanas; em Belém assumiria a de marco da légua patrimonial na rota de Pedro Teixeira: bastante coerente. Nos exemplos a seguir, em Vila da Torre do Lobo e Segura, identificamos o seu uso também associado à edificação.

Miliário, sul de Segura
Miliário, ao norte de Segura
Miliários na entrada norte, Segura
Marco miliário, Vila da Torre do Lobo

Marco miliário Villa da Torre do Lobo



















Atualmente encontra-se, juntamente ao marco fálico da avenida Almirante Barroso, o Monumento ao Marco da Légua, inaugurado em alusão ao tricentenário da citada carta de sesmaria da primeira légua patrimonial de Belém, em 1928, cujo discurso de inauguração do Sr. Paulo Eleutério (secretário da Intendência - ainda não era prefeitura - de Belém) citava o "modesto monumento, que junto deste marco se eleva", o que reafirma a função da pedra cilíndrica de cerca de um metro de altura.

Essa hipótese já tinha sido registrada na minha dissertação de especialização em Semiótica e Artes Visuais, denominada Marcos do Tempo, e mesmo aqui no blog-filho já tinha sido postado trecho da conclusão onde eu sinalizava a necessidade de aprofundamento dessa tese que, para mim, carece apenas de confirmação documental, que há de vir ainda, num achado entre os códices do Arquivo Público do Estado do Pará.
Retornando ao ponto da questão: a fixação pelo caráter fálico da pedra do Palácio Velho.

Há uma lenda urbana em Belém que a pedra no canto do Palácio Velho fazia referência ao nascimento de um varão: o filho primogênito de uma família nobre. Essa defesa apaixonada pela representação do falo associada à residência dos mais abastados talvez tenha se mantido em Belém como um signo prepotente e elitista, porém, como não faço parte de qualquer casta que necessite se afirmar, apenas desenvolvi estudo que me tomou algum tempo e esforço e que faz parte da citada monografia, disponível para consulta no ICA-UFPA. Entre esses estudos, foram feitas consultas a grupos de pesquisadores e historiadores lusos, nos quais me apoio por conhecedores da cultura de onde advém a referida tradição.

Monumento fálico do santuário de Dionísio, Ilha de Delos
A tradição do "falo do varão" é de origem pagã, ainda comum em algumas pequenas cidades do norte de Portugal, e o rito a ele associado continha danças, ornamentações e até a esfregação da mulher grávida no falo, que deveria ficar em espaço aberto e, se próximo à residência, à frente de um dos vãos (porta principal, normalmente) para que as energias entrassem. O falo deveria ser ainda ornado de flores, como guirlandas que o recobrissem para garantir bom parto. O elemento fálico poderia ainda ser colocado nas fachadas, muitas vezes com função que disfarçava a forma, como elemento decorativo, como pingadeiras de telhado. Para função ritualística, ele deveria estar livre para que as danças e adornos pudessem ser feitos, jamais presos à fachada, como acontece no Palácio Velho. A localização do falo da Cidade Velha não condiz, portanto, com as necessidades da tradição ritualística e, mesmo que de fato fosse símbolo do nascimento do primogênito, por não seguir os preceitos da Igreja Católica, portanto não poderia ser transladada à colônia sem ser considerada heresia e sujeita à Inquisição. É improvável que um rito ou tradição pagã fosse, portanto associado ao edifício "da prefeitura".

Outra hipótese é que o falo tivesse função de defender a cunha do Palácio de um eventual abalroamento de uma carroça desgovernada. Contudo, no século XVIII, data inicial do Palácio (portanto quando foi colocada pedra no canto do imóvel), a atual Doutor Assis era pouco mais que um caminho de terra, sendo também improvável essa hipótese, salvo por extremo zelo. O falo, portanto, é contemporâneo à construção do imóvel, século XVIII.

No livro "Monumentos de Belém", de Ernesto Cruz, há explícito que a marcação da primeira légua patrimonial foi feita em madeira, embora a que se apresenta ao lado do Monumento ao Marco da Légua seja em pedra. Uma simples comparação visual é capaz de identificar as semelhanças entre os dois marcos em pedra de lioz, na forma, matéria, tamanho e acabamento. Portanto, defendo que a pedra do Palácio Velho é o marco-zero da demarcação da primeira légua patrimonial de Belém, visto estar associado à sede do governo local. O uso de pedra para demarcação era comum desde a pré-história, porém assume papel claro com o Império Romano, especialmente os obeliscos e, como já citadas, as pedras miliares. A Coroa Portuguesa se utilizou da pedra de lioz durante os trabalhos da Comissão Demarcadora de Limites, já a partir de meados do século XVIII, que foram trazidos de Portugal e naufragados em Barcelos. Dessas pedras, temos 3 exemplares: um em Brasília (Itamarati) e dois em Belém (na sede da PCDL - Primeira Comissão Demarcadora de Limites - e em frente ao IHGP - Instituto Histórico e Geográfico do Pará). Na PCDL existem estudos - com maquetes - dos marcos demarcatórios usados a partir de meados do século XVIII, contudo a forma cilíndrica sempre foi utilizada, por ser mais simples, em várias situações. No topo da pedra do Palácio Velho há um furo e (não sei se ainda existe) uma peça em metal, outro elemento de uso em pontos de referências geográficas.

Meu objetivo não é levantar qualquer tipo de polêmica, mas de contribuir para um melhor entendimento sobre esse detalhe tão rico da cidade de Belém. Claro que a tradição reafirma essa tese do "falo do varão", e tradições são mais permanentes que as pedras, ao ponto de ter sido duramente criticada, como disse, quando disse que o "falo do varão" é mais uma lenda urbana de Belém. Creio firmemente no que digo, pois foi fruto de longa pesquisa, que, como disse, está disponível à consulta há mais de dez anos, sem nunca ter sido apresentado contra-argumento documental.
 
Outra evidência é quase irônica: considerando que eu esteja errada, que seja o falo do nascimento de um varão - homem primogênito de uma família nobre - onde estariam os outros varões (ou terá nascido um único varão em Belém no século XVIII) ou qualquer outra representação fálica na cidade, visto ser uma tradição?

Comentários

Unknown disse…
Gostosa leitura. Ficou bem claro o uso desses marcos. Um abraço.
Unknown disse…
Muito bom estudo!
Matou minha curiosidade de anos, parabéns.
Presidente disse…

Claudia, nunca ouvi nem falar, antes dos anos 70, nem mesmo uma alusão a 'simbolo fálico' do marco da légua. Realmente é uma invenção paraense, pois em Portugal, se existiu algum falo na porta de alguma casa, foi mandado retirar no periodo da ultima ditadura.

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