Ver-o-Peso, ver o que está visível a todos

Todos sabem que eu não moro mais em Belém, e isso é parte do motivo desse blog estar em ritmo lento de postagens. Belém é um poço sem fundo de problemas, histórias e inspiração para postagens. Aqui em Roraima ainda estou construindo um conjunto de referências que, pouco a pouco me permitem consolidar dados e desejo suficientes para uma postagem, visto que eu não gosto de expor levianamente minha opinião sobre as coisas. Quando eu digo algo, aquele tema já se debateu dentro de mim, já pesou para um lado, para outro... Não me preocupo em guardar as palavras que eu digo, as opiniões que eu tenho, pois elas vêm de dentro de mim, passam por meu filtro ético e, quando saem, devem cumprir o papel das palavras que o vento espalha: já não me pertencem.
Belém ainda é a maior fonte de inspiração para consolidar minhas opiniões, afinal foram quase 25 anos de imersão em seus problemas. Belém também é onde tenho amigos que compartilham suas angústias e se lembram de mim nesses momentos. Foi assim que, observando de longe a questão da proposta para nova intervenção no Ver-o-Peso, tive que comentar algumas postagens no Facebook. A primeira, quando tive acesso à propaganda, a partir de uma postagem do jornalista Ney Messias Júnior onde ele diz que "uns vão criticar. outros vão amar". De verdade, não amei, mas também não iria engrossar o coro daqueles que iriam polarizar a discussão para mais um Remo X Paysandu, então me posicionei, como acredito que deva ser feita uma crítica.
Acho que a oportunidade de discutirmos de forma madura, entre pessoas inteligentes, questões amplas e, especialmente, sobre temas do patrimônio cultural, imperdível. Não é questão de ser chata, mas de tentar elevar o nível da análise.
Aí veio o Tiago Paolelli pedindo minha opinião, e dei. Aproveitei para mandar pra ele as pranchas do projeto do Ver-o-Peso que venceu o concurso nacional promovido pelo Instituto dos Arquitetos do Brasil, que foi compartilhado pelo arquiteto e professor da UFPA José Maria Coelho Bassalo, como exemplo de método para fazer uma intervenção de grande porte: com pesquisa!
Aí veio a querida Dulce Rocque (que pode me pedir qualquer coisa!) pedindo meu posicionamento: copiei as minhas posições anteriores, ajustei alguma coisa e ela postou no blog da CiViva. Aí as pessoas compartilharam...
E quanto mais vejo a proposta (não me forcem a chamar de projeto!) para o Ver-o-Peso, quanto mais as pessoas me questionam, mais equívocos vejo!
Alguém me questionou sobre minha opinião sobre o Museu do Amanhã (?!):
Sobre o Museu do Amanhã vi menos que possível para uma análise crítica consistente, pois os dados são ricos e a obra em si é bastante complexa e inteligente. Não sei dar opiniões superficiais, mas do que eu acompanhei da vista que fiz à obra, em julho passado, ele é impressionante, como arquitetura, e marcante como elemento dentro da estrutura urbana, qualificando uma área historicamente complicada. Caberia um projeto do Calatrava lá no fim da Doca, como promotor de desenvolvimento cultural para Belém, em vez do terminal de conteiners da CDP que só causam danos ao centro urbano e a seu entorno imediato.
Morei em Belém durante 25 anos, posso dizer que frequentei a área do Ver-o-Peso diariamente, pelo menos, por uns 20 anos, visto que trabalhei com patrimônio cultural por esse tempo. Desta forma me sinto bastante confortável para emitir opiniões sobre o Veropa, mais do que sobre o Museu do Amanhã.
Coincidentemente estive como monitora da exposição de projetos do concurso do Ver-o-Peso, que ocorreu na antiga e extinta Galeria Municipal de Arte (Belém, terra que destrói coisas belas... mais que São Paulo!) e sou capaz de lembrar de detalhes de alguns projetos. Nenhum era pior que o que se apresenta! O projeto vencedor do concurso de 1999 foi premiado, mas também foi discutido e adaptado, afinal, não existe solução perfeita.
Sobre o desejo de transformar o Ver-o-Peso em algo que ele não é: com a implantação do projeto anterior, me lembro de uma brincadeira que fizemos, eu, [e os colegas arquitetos] George Venturieri e André Guilhon em "requalificar os urubus", capacitando-os a um andar mais elegante e dando aulas de segurança alimentar para que não comessem carniça e, claro, fornecendo uniformes brancos para que eles ficassem mais parecidos com garças, que são mais fotogênicas e simpáticas que urubus. Nesta ironia está a crítica de um pensamento primário de gentrificação e exclusão que precisamos combater. O Ver-o-Peso é uma feira livre. Os vendedores são capacitados, dentro de seu nível profissional e detentores de conhecimento muito maior que o senso-comum possa imaginar. Frequentar o Veropa, não como consumidor, mas com olhar etnográfico, é sair feliz e com a alma repleta.
A proposta (que não chamarei de projeto, pois não é) é uma agressão à dinâmica do Ver-o-Peso como espaço de trocas. Cada vez que eu vejo aquele vídeo, encontro mais erros! Os boxes vão matar as dinâmicas de trocas e integração dos "feirantes" (entre aspas, pois vai deixar de ser uma feira, com a conformação proposta) e destruir o status de "maior feira livre da América Latina".
Sobre os degraus da orla: quem conhece a área sabe que ela é sujeita a inundações, especialmente na maré cheia de março. Não dá para tirar os degraus, simplesmente. Uma opção seria aterrar e levantar toda a área central para que aqueles incômodos degraus deixassem de existir.
Entende porque as respostas não são simples e exigem estudo prévio? Isso é dinheiro público, é espaço público, é patrimônio público, e cultural.
Também espero o dia em que o Ver-o-Peso seja melhor, assim como as pessoas que o fazem. Por enquanto, acho que essa proposta piora o que não está tão ruim assim.

Em outra postagem vejo alguém comentando que tem que se tirar os trapiches e pequenos portos da orla de Belém, transformá-la num belo calçadão. Bonito. Só pergunto por onde vai chegar a farinha que é feita pelo caboclo do interior, ou o peixe. Como ficam as culturas de subsistência que abastecem a cidade? As propostas precisam dar respostas às questões, não apenas fazer o bonito.

Outra pessoa questiona a beleza das coberturas. Meu conceito de Belo é mais amplo que apenas oposição ao que é feio, e respondo:

A questão das coberturas atuais é que elas só aparecem em foto aérea (os urubus não se incomodam), elas causam menos impacto ao entorno, tanto em relação ao bloqueio de vento quanto de fluxos.
No caso das lonas tensionadas, garante a iluminação. Quanto à manutenção, isso é um custo que tem que ser previsto em qualquer projeto. Especialmente público.
Tenho certeza que [foi previsto no projeto] sim, mas o projetista não é o gestor público, infelizmente.
Existem dois discursos ocultos nessa questão do Ver-o-Peso: gentrificação e apagamento de memória.
Sobre gentrificação, não vou explicar aqui o que é, mas está bem exemplificado acima.
Sobre apagamento de memória, o Ver-o-Peso é, em seu atual aspecto, talvez a maior e mais eficiente intervenção na área depois da instalação do mercado de ferro. Não foi aleatória, foi pensada, projetada e executada com discussão pública, envolvendo vários segmentos e, de forma ampliada, alcançando outras regiões do Centro e da cidade. Promoveu tamanha auto-estima na população que se aventou a possibilidade de lançar o Ver-o-Peso como patrimônio da humanidade (não sei em que pé está esse processo). A tudo isso, alguns, especialmente os que se incomodam, associam à gestão do prefeito (atual deputado federal) Edmilson Rodrigues: segundo esses, o Veropa é a cara do Edmilson. Pra mim, o Ver-o-Peso é a cara do Ver-o-Peso.
A questão aqui não é se a criança parece com o pai, mas que querem matar a criança porque saiu com a cara do pai, é isso?
Tem gente que acha que isso é pessoal. Tem gente que prefere batata-frita...
O Ver-o-Peso é tombado nas três esferas.
Enfim, só fazem isso se o povo do Pará permitir.

Comentários

Parabéns pelo belíssimo texto, concordo plenamente com vossa senhoria, poucas vezes consigo ler um texto e concordar desde a primeira maiúscula até o ponto final.
Claudia disse…
Eu quem agradeço o comentário, que me faz acreditar que eu não estou sozinha vendo o que estou vendo.
Auriléa Abelem disse…
Texto verdadeiro, de quem tem conhecimento, coerência e amor pela cidade e nos ajuda no debate. Parabéns!
Claudia disse…
Aurilea, sinto-me envaidecida com esse comentário, pois sabes como sou sua fã.
Contem comigo!
José Ramos disse…
Muito bom, Cláudia. Falou tudo. De longe, mas, felizmente atenta.

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