Eu e a universidade

Universidade, para mim, era algo distante. Não por uma condição que me impedisse de alcançá-la, mas a minha infância foi cercada de conhecimento, como rotina e, na década de 1970, quando vivenciei a ida do meu irmão mais velho para a Rural e minha irmã para a UCP, em ações épicas de mudança de tantas coisas, pensei: é preciso muito para ser universitário. Sabia que era preciso passar em concursos e nunca tinha sido boa neles: tentei para o Colégio de Aplicação da UERJ, para o Visconde de Cairu e fui reprovada na antiga Escola Técnica (onde meus irmãos tinham estudado).
Realmente, meus irmãos mais velhos eram melhores do que eu, eu os admirava.
Mas a minha segunda tentativa para o CEFET/RJ foi exitosa e, pensei que talvez eu não fosse assim tão incapaz. No fim do curso técnico em edificações prestei vestibular, sem fazer cursinho, e passei.
É, parece que não é algo assim tão complicado entrar numa universidade...
No ano seguinte fiz outro vestibular e passei a cursar Arquitetura (e Urbanismo) e Psicologia, ambos na UFF. No outro ano tentei outro vestibular, mas perdi a hora da prova por conta de um apagão. O vestibular já não assustava mais.
A visão heroica de um curso universitário passou a se revelar, na verdade, numa etapa diferente de um processo de aprendizado, nada mais que isso, com a preocupação de que, ali (assim como no curso técnico, e devo essa tomada de consciência antecipada) sairíamos com responsabilidades profissionais: e seríamos cobrados por isso. Ser universitário, pra mim, sempre foi uma atitude de compromisso com a minha vida e com àquelas que estariam envolvidas na consequência de meus atos como profissional. Abandonei Psicologia e segui na UFF, sendo monitora de algumas disciplinas que tinha facilidade e me dedicando a aprender o que sentia necessário.Trabalhava, virava noite em bicos de desenho ou estudando, mas tinha teto e prato com comida à minha espera, todo dia, sem necessitar disso.
Me lembro de colegas que vieram de outros municípios do interior, do Paulista e do Brodowski, vindos de São Paulo, e até de um angolano em minhas turmas. Eu não estava enganada e a formação superior era uma aventura e um compromisso. Também vi muita gente desistir, por inúmeros motivos, mas a maioria por incompatibilidade com o curso, escolhido antes de poder assumir responsabilidade como adulto.
Minha irmã e meu cunhado eram professores e eu acompanhava tangenciando a vida de um professor universitário. Naquela época só havia (que me lembre) bolsas de monitorias e, para estas, precisávamos passar por provas e dispor de tempo para trabalhar com assistência aos colegas (como um mini-professor) e aí aprendi a ensinar e que ambos. aprender e ensinar, são duplos do mesmo processo.
A minha vida passou por processos pessoais que, um dia, escrevo sobre eles. Atualmente sou professora na UFRR e sei que fazer um curso universitário continua sendo para poucos. Mesmo com todas as possibilidades de bolsas e auxílios, acessos e informação, estamos inseridos em um mundo bem mais complexo do que vislumbrávamos no passado. Os erros não serviram como aprendizado e, ao contrário, são tratados como vantagens de um vento ameno que soprou sobre o campo de batalha do ensino superior. A UFRR tem pouco mais de 25 anos, o curso no qual sou professora tem pouco mais de 10. Ainda não temos uma rotina de produção científica acadêmica porque vivemos ainda para consolidar essa estrutura neófita ou, como se diz aqui, cortando juquira.
Nesse mesmo cenário vemos notícias de UERJ, UFRJ, UFPE, entre outras e respiramos por não ser conosco. Alguns respiram aliviados - normalmente aqueles que não têm compromisso com o seu fazer ou sua instituição - outros respiram para tomar fôlego, consciente que não são conjunturas pontuais, mas sistêmica e que, se está atingindo grandes instituições, o que não ocorrerá com a nossa?
Há muito pouco tempo o curso de Arquitetura e Urbanismo da UFRR esteve para fechar, atualmente registra nota 4 na última avaliação do MEC. Não é a toa: somente a partir de 2012 teve um aluno formado, de 2014 alunos produzindo artigos científicos e 2016/7 a CAPES avaliou com B5 uma revista científica da qual fui editora de seção. Em 2013 teve concurso (pelo qual entrei), 2014 tivemos nossa primeira professora (visitante) doutora e em 2017 a primeira arquiteta PHd, por concurso. No momento temos cinco professores cursando pós-graduação stritu sensu, sendo dois sem pedido de licença para afastamento, cursando mestrados possíveis por aqui. Apesar de percalços, não podemos negar que estamos num cenário que (ilusoriamente) está melhor que o do restante do país, contudo não temos a possibilidade de investir em capacitação e o que é produzido cientificamente deve-se à dedicação individual de professores e discentes: recentemente, inclusive, foi negada a uma aluna a concessão de apoio para viagem onde ia apresentar trabalho em Florianópolis.
De algo distante, agora me sinto a víscera de uma universidade. Me sinto um órgão que precisa funcionar e promover outros sistemas, de maneira que tudo corra bem, mas esse organismo está num ambiente doente, não podemos negar. É imprescindível que não deixemos pequenas bolhas e tumores avançarem sobre este contexto frágil, para que os órgãos que funcionam bem não sejam sacrificados. É necessário não esmorecer, é preciso respirar fundo e seguir adiante, não se deixando contaminar com o ar fétido, mas sem ser insensível ao que ocorre nas instituições públicas de ensino, e mesmo na nossa. Não podemos ser hipócritas e carregar o piano enquanto outros observam: todos têm que fazer a sua parte.
Continuo convivendo com alunos do interior e de outros estados, que batalham para alcançar o seu melhor. Em muito breve teremos um sem-número de alunos oriundos também da Venezuela, fato que se expressa claramente pelas ruas e noticiários de Roraima. Não podemos legar a eles uma falsa meritocracia sem assumirmos o nosso papel, pois nem sempre (quase nunca), as condições são ideais, mas devem ser éticas e responsáveis. É inegável a qualidade daqueles que lutam pela conquista, em comparação com os que se utilizam da instituição pública apenas para a conquista de um diploma: os primeiros se formam, no sentido mais amplo desse termo.
Não tenho previsões, mas tenho crenças, sendo que a principal é na qualidade e potencial humano que temos. Precisamos, sem dúvidas, de que todos tenham consciência histórica e percepção do mundo em que vivemos, sem paixões ou partidarismos, mas com olhar no futuro que desejamos, a partir de um presente no qual podemos colaborar.
Não pretendo sair mais da Universidade, pois ela já não pode sair de mim.

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