Aldeia Maracanã

É o momento de pararmos e pensarmos seriamente sobre o que está acontecendo.
No edifício do antigo museu do índio, no bairro do Maracanã (antigamente se chamava Derby, justamente porque, antes do estádio, havia o Derby Club, com corridas de cavalos) funcionava em princípio a veterinária que atendia aos cavalos que ali corriam. Com o tempo, o edifício, último testemunho deste tempo, assumiu várias funções, tendo sido, portanto, o Museu do Índio em pleno período da ditadura militar, sendo marco de uma brasilidade múltipla e complexa, que nos chegava pelos programas "Amaral Neto, o repórter" (quem tem em torno de 50 anos, no mínimo, vai se lembrar bem).
Enfim, ao antigo Derby sucedeu-se "o maior estádio do mundo" e, agora, o projeto visa atender, a partir de intervenções intensas e profundas, inclusive na malha viária do Rio de Janeiro, as demandas de um evento (tá, dirão um mega-super-hiper importante evento - ou dois - de abrangência mundial, mas de qualquer forma é um fato atípico na demanda de necessidades da sociedade).
Simples assim!
Foto retirada da página no Facebook da Aldeia Maracanã
E pergunto, o que fica?
Os índios (que devem ser de tribos dispersas ou ressurgidos - assumidos identidade indígena) estão fazendo movimento de resistência, não por um museu, mas por uma lógica de respeito à cultura, ao direito à memória, à manutenção das referências... poderia até dizer à legislação urbana, visto que eles estão ocupando o imóvel há mais de 5 anos, então aplicaria-se o usucapião urbano, sem dó nem piedade! Mas prefere-se atender às demandas de um projeto, transformando um testemunho histórico em área de estacionamento e outros usos que atendem à lógica do mero consumo, quer do circo do evento ("evento vai no vento", diria uma amiga), quer no sentido mais popular, com a construção de um centro comercial.
E fica-se a dúvida, em forma de paradoxo: a demolição leva à construção de quê?
O que realmente está sendo demolido?
Os índios que se auto-denominam "Aldeia Maracanã" são os heróis da resistência da cultura e da história. Reafirmam a necessidade de nos posicionarmos firmemente, contra todas as forças de apagamento de nossos rastros, que nos permitem retornar com segurança às nossas origens. Com todos os equívocos que os "índios" possam estar cometendo, tem meu total e declarado apoio!

Há algum tempo tenho pontuado alguns equívocos da intervenção no entorno do Maracanã, que é sempre bom rever, inclusive sobre o edifício do antigo Museu do Índio. Leiam e entendam.

Comentários

O prédio não é sequer tombado e o Museu do Índio (o real) funciona há mais de quatro décadas em Botafogo, em um casarão histórico cercado de jardins. O prédio do antigo museu estava abandonado e chegou a ser ocupado por mendigos. Assim que se ouviu falar que haveria Copa, trouxeram alguns índios de outras regiões e vários militantes de partido emergente pra o local, pra montar essa farsa. Ali nunca viveram índios, exceto, talvez, antes do século XVII. Morei bem pertinho, posso falar. O que faz um museu não é o prédio.
Em tempo: quem é arquiteto sabe que as cidades são espaços dinâmicos ...
Claudia disse…
Não sei se há quarenta anos, pois o meu irmão estudou na antiga Escola Técnica e frequsntava o Museu do Índio, esse prédio, mas vamos lá.
O fato da apropriação pelos indígenas (ou por qualquer um), se há mais de cinco anos sem reação, por si só já caracteriza usucapião urbano.
Mas vamos nos ater às questões de preservação: não existe "tombamento de uso", portanto não estamos aqui discutindo o "museu do índio", que, na verdade, foi um uso dado a posteriori para o edifício, ainda mais antigo, onde funcionava a veterinária do Derby. Aí sim temos um ponto relevante: este edifício (sua existência material, portanto tombável) é o último testemunho de um momento histórico que buscou dar ao Rio de Janeiro ares de grande cidade. O Derby Club, anteriormente ao Hipódromo da Gávea (Jockey Club Brasileiro surgiu com a fusão do Derby Club, veja http://www.jcbinforma.com.br/historia). Os esportes são sempre signo de civilidade, e o futebol surgiu com força no Brasil a partir do Estado Novo, sobrepondo ao Derby o atual estádio do Maracanã.
Também sou arquiteta e urbanista, estudiosa de História, Artes, Semiótica e Patrimônio, e não há, ao menos em nenhum desses campos, justificativa plausível para que se substitua um elemento significante por um não-lugar! Estacionamentos, shoppings, vazios urbanos são, por essência, o oposto de urbanização. Mesmo Le Corbusier admitia no seu Plano Voisin a manutenção de alguns monumentos como marcos históricos. E estamos falando de urbanização "a la Haussmann", de arrasamento de grandes áreas! De Haussmann até aqui temos o século XX e toda a discussão das diversas teorias de preservação. Acho que mais de cem anos depois já poderíamos ter incorporado alguns conceitos, como a exemplaridade, antiguidade e raridade de alguns testemunhos; o edifício em questão tem, além desses valores de preservação, é tão significante que eu, cada vez que passava distraidamente por lá, despertava o sentimento evocativo de tudo que aquela região foi, real ou potencialmente, e que aquele edifício é testemunho.
Cidades são dinâmicas, mas não são descartáveis.
Cara Cláudia,

O que chama a atenção é que quando o edifício esteve afetado à secretaria estadual de abastecimento ou puramente ocupado por mendigos (valeria aí também o usucapião, então?) não havia movimento algum em favor de sua preservação. Bastou publicarem a notícia de que o Maracanã sediaria um dos eventos da Copa para surgir, como que em um passe de mágica, a tal 'aldeia'. Onde hoje há a Avenida Presidente Vargas, principal artéria da cidade, havia inúmeros cortiços, você deve saber disso - tiveram que ser derrubados para dar lugar a uma via (seria ali um 'não lugar', também?). Não ligue para meu tom crítico e até um pouco irônico - gostei da tua fala civilizada e da fineza da tua resposta. Concordo que pudessem até manter o edifício de pé e destiná-lo a algo melhor que um estacionamento, mas reparo que os estacionamentos hoje também fazem parte de qualquer projeto urbanístico. Quando há jogos, isso é um ponto crítico no Maracanã: onde estacionar e qual a garantia de encontrar o carro na volta? Além do fato que, quando há chuvas fortes, o carro pode ir parar dentro do canal ...
Acho legal essa nossa conversa e bastante ilustrativa. O que acho ruim é apropriarem dados da identidade indígena ou de quem quer que seja para fazer campanhas que em realidade visam à promoção partidária, via oposição a toda e qualquer obra. Não digo que seja o seu caso, mas vejo isso nos que fabricaram essa campanha, bem como numerosas outras. Enfim ... vamos ver até onde isso tudo nos leva. Minha avó estudou e depois chegou a lecionar tupi ali. O atual Museu do Índio (ver no site do museu: http://www.museudoindio.org.br) mudou-se para Botafogo em 1978! O prédio que ocupa, este sim, é tombado e foi construído no séc.XIX. O museu é lindo e rodeado por jardins. Aquele abraço e vamos nos falando! Gostei também da tua visita ao meu bloguinho, o improvável Sala Fério!
Claudia disse…
Vamos por partes, como diria Jack, O Estripador! rsrs
Considerar a situação da abertura da Presidente Vargas e da Avenida Central como paralelo às intervenções para a Copa seria anacrônico: o contexto das intervenções na área do antigo Mangue e da atual avenida Rio Branco (ou o arrasamento do Morro do Castelo, sítio inicial da cidade de São Sebastião do Rio de Janeiro) foram feitas até o início do século XX e tinham uma visão sanitarista e de racionalização de fluxos, inspirado nas intervenções conhecidas como Reforma de Paris, que foram difundidas pelo mundo como Plano de Haussmann (Georges-Eugène Haussmann, prefeito de Paris à época). Nesse ponto, visava-se mais as demandas sanitaristas (inclui-se nisso o contexto da Revolta da Vacina; lembremos que no século XVIII e XIX as cidades, por sua densidade populacional tornaram-se ambiente de várias epidemias, como febre amarela e cólera. Então, certamente sob uma visão patrimonialista. muita coisa foi perdida nessas intervenções, mas também não foram sem críticas (embora as discussões sobre patrimônio ainda fossem engatinhantes na Europa, jamais considerariam bens tão "novos", visto que, pros estudiosos - especialmente franceses - a herança clássica greco-romana e, os mais ousados, as edificações medievais.
Isso era a mentalidade da época.
Quando falo em não-lugares, baseio-me num texto de referência Marc Augè que estabelece esse conceito dentro do contexto da "antropologia da supermodernidade" (se quiser tem aqui http://books.google.com.br/books/about/NAO_LUGARES.html?hl=pt-BR&id=lpj4ca_UFmEC).
A modernidade de Haussmann não previa a impessoalidade de alguns espaços. Ao contrário, Haussmann concebia espaços de sociabilidades como passeios públicos e boulevares. Estacionamentos, shoppings e vias expressas são exemplos típicos de não-lugares, pois não são passíveis de relações interpessoais e estabelecimento de relações de afetividade. Você pode dizer que nos shoppings são possíveis relações humanas,concordo, mas são efêmeras: o ambiente de hoje vai ser diferente daqui a um mês, e nisso a necessária familiaridade com o ambiente, que nos permite conforto e sensação de familiaridade se esvaem.
A preservação de referências garantem saúde social e fortalecimento de identidades.
Quanto ao uso partidário, já expliquei anteriormente: possivelmente há, no caso da Aldeia Maracanã. Não estou no Rio, moro em Belém há 25 anos, então não estou analisando essas tensões. Faço uma análise patrimonial e, sob essa óptica, é legítima. Tenho minhas críticas quanto aos povos ressurgidos e legitimação de seus territórios, que também tem sido utilizados em joguetes partidários, mas acho que esses atores estão permitindo dar voz às pedras que, por si, não teriam como reagir.
Acho que os mendigos das décadas de 1970-80 teriam direito a habitação, e poderiam ter requerido, mas muita coisa foi implementada após a Constituição de 1988, muitas demandas sociais e urbanas foram regulamentadas após isso. Ainda estamos engatinhando em muitas coisas, mas precisamos ter consciência cidadã para avaliar o que realmente é importante em cada situação.
Desculpe o excesso de academicismo, mas é importante esclarecer beeeeeeeeeem para que não gere dúvida sobre o que defendo.
Claudia, concordo com muito do que você expressa acima. Eu também sou meio avesso às paisagens típicas das megalópoles, com seus enormes viadutos, avenidas e espaços pouco apropriados ao encontro e convívio das pessoas. Meu sonho, aliás, é morar um dia em uma cidade menor, mais pacata, mas percebo que em um país das dimensões do Brasil e com a população que tem, é até natural existirem grandes cidades com profusão de escritórios, grandes e numerosos prédios, vias expressas, megalojas ... ou, pelo menos, isso repete uma prática mundial.

Quanto ao usucapião urbano, ele pode ser invocado exclusivamente para moradia e pressupõe a posse pacífica e ordeira por 5 anos consecutivos, mas os imóveis públicos não estão sujeitos a essa norma, já que a CF/88 os declara assim. Tenho até visto alguns juízes de 1a. instância (trabalho na JFRJ) darem provisoriamente permissões para ocupar com base na função social da propriedade, mas esses ocupantes ficam sem ter um título de propriedade e acabam tendo que sair, mais cedo ou mais tarde. É até justo que prédios abandonados sejam ocupados, já que não estão cumprindo função social alguma, mas não sei se o caso atual ali no antigo museu do índio é esse, já que o que objetivavam era usar o espaço para outra finalidade. Eu mostro um grande ceticismo no meu ponto de vista porque vejo irem modificando os argumentos: antes havia a proposta de um centro cultural, apenas, agora já inventaram um suposto cemitério sagrado (só descobriram agora?) e como é 'sagrado', não aceitam outro local em troca. E ainda dizem que o local estaria sendo reivindicado por três tribos (!!!) Hehehe ... tem dente de coelho! Três tribos, três etnias diversas que afirmam ter vivido na mesma base territorial, em uma área tão pouco extensa?

No mais, também estou gostando muito de conversar contigo. Pode me alcançar por e-mail, também: brbrbr@ig.com.br

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