A implicância natural das coisas

(Sou colaboradora de uma revista local - Pará+ - e este artigo, como outros, foi encomendado e remetido para publicação. Nunca um artigo meu não havia sido editado, nem mesmo aqueles de temáticas mais amplas. Como não poderia deixar de ser, este artigo não chegou a ser publicado... Não procurei ver os motivos. Apenas rezei pela alma de Edward Murphy...)

Quem não tem a impressão que, em algum momento da vida, fez tudo certo e, sem explicação lógica, algo fugiu de seu controle? Possivelmente neste momento pode constatar a existência da Lei de Murphy, ou a “Lei da Implicância Natural das Coisas”. Eu sempre pensei que essa Lei fosse um tipo de piada. Quando nova eu li o livro “A Lei de Murphy e outros motivos porque tudo dá errado", de Arthur Bloch, traduzido por Millôr Fernandes, e acreditei por anos ser mais um exercício do humor de Millôr. Aliás, este grande escritor brasileiro foi marcado para ser o arauto da Lei de Murphy. Talvez muitos saibam, mas vou contar uma velha historinha. Millôr é meu “conterrâneo”, do subúrbio do Méier, no Rio de Janeiro, porém contemporâneo ao meu pai. Ambos foram registrados no mesmo cartório, e pelo mesmo homem, na época em que não havia impressoras e nem eram usadas máquinas datilográficas, e os escrivões escreviam as certidões. Precisavam ter uma bela caligrafia, e esse senhor o tinha. Eu vi a certidão de nascimento de meu pai. Mas aquelas letras eram tão rebuscadas que não poucas vezes causavam problemas de leitura. Millôr não nasceu Millôr, mas sim Milton Viola Fernandes, mas a grafia fez surgir esta identidade única. Jogou o traço do “t”, arqueado, por sobre o “o”, que vinha seguido de um “n” tão trabalhado que se fez de “r”. O seu registro, que foi feito após seu nascimento, em 16 de agosto de 1923 e, como é de se esperar, também gerou um erro na data de nascimento, que oficialmente passou a ser o dia 27 de maio de 1924. Millôr se torna ímpar, não apenas por seu talento e inteligência crítica, mas também por ser um caso raro de um homem com dois nomes e dois nascimentos!
Desta forma, a Lei da Implicância Natural das Coisas nunca foi uma tese realmente levada a sério por mim. Mas, graças à internet, recebi um e-mail com algumas frases que representariam a aplicação dita Lei em várias situações. Quando repassei adiante, recebi a boa provocação dos editores da Pará + de descobrir a autoria das frases. A curiosidade, como madrinha das boas descobertas, me fez resgatar essa pequena, mas importante, referência da Lei de Murphy na minha vida. Sim, porque, quem me conhece pessoal e intimamente sabe que eu sou uma prova viva das forças naturais do contra! É claro que alguma coisa deverá acontecer com este artigo... Mas é assim mesmo, fazer o quê?
Qual a minha surpresa ao descobrir que Murphy realmente existiu! E que essa lógica é conhecida como um princípio de design defensivo. Quer dizer, se duas peças são iguais e existe a possibilidade de troca em seus encaixes, deve-se criar um design assimétrico para reduzir a possibilidade de erro. Porque, se existe possibilidade mínima de troca, ela vai acontecer! É a Lei! Edward Murphy foi um engenheiro que trabalhava para a Força Aérea Americana. Durante um de seus experimentos (USAF, projeto MX981) envolvendo uma pessoa-teste, em 1949, onde seria necessário fixar dezesseis acelerômetros para testar a tolerância humana à aceleração, nenhum deles foi colado da maneira correta. Existiam duas formas de fixação de cada sensor, e em todos os dezesseis foi feito da maneira errada. O major John Paul Stapp, a “cobaia” no experimento, o ouviu dizer, e difundiu, aquela que seria conhecida como a primeira Lei de Murphy:“Se há duas ou mais formas de fazer alguma coisa e uma das formas resultar em catástrofe, então alguém a fará.” O reconhecimento da Lei da Implicância Natural das Coisas, também conhecida como Lei da Trapaça, se faz num de seus principais axiomas: "O pão sempre cai com a manteiga para baixo". Quem duvida disso?
O grande lance da vida está em reconhecer que não há planejamento possível sem considerar o erro como uma possibilidade real. E nisto está a beleza: no acaso. Ninguém se surpreende com a rotina e com a previsibilidade. Um tio meu dizia que pic-nic sem formiga não tem graça. E é quando aceitamos a possibilidade do “se” que a vida ganha em perspectivas inesperadas. A bem da verdade ninguém quer viver ao sabor do vento; todo mundo quer poder prever minimamente os seus passos para não cair num estado de subordinação às forças externas, que levariam a um esvaziamento de autodeterminação da vida. Mas qual a mulher que não quer ser surpreendida com uma flor? Quem não quer um promoção inesperada, ou um aumento, ou um prêmio de loteria? A mudança de planos não precisa obrigatoriamente estar condicionada ao acaso e ao erro. Nós podemos inferir nossa vontade no acaso alheio.
Certamente os leitores que estão acostumados com artigos mais técnicos vão achar estranho este, quase biográfico. Mas nós interferimos no acaso, não podemos ser subservientes, apenas vítimas dele. Millôr Fernandes diz que “viver é desenhar sem borracha”. Ele deve ter clara noção disso, pois além de escritor é um chargista de referência. A questão está no fato que às vezes queremos insistir tanto na precisão de nossas vidas, que qualquer acaso se eleva à categoria de catástrofe! Mas a vida não é uma prancha de desenho técnico, é um desenho livre, impressionista ou expressionista (ou, talvez, surrealista), caricato muitas vezes, de intenções nem sempre tão objetivas. É um lápis correndo frouxo, construindo formas que vão significar realmente quando retornarmos o olhar. Edward Murphy ficou famoso não por sua competência técnica como engenheiro, mas por um erro expresso numa frase, um conceito, reproduzida e reconhecida como um fato de tamanha precisão que atinge a todos, indistintamente. Devemos, pois, ver os desvios como novos caminhos. Observar a vida com o olhar atento para os novos meandros e matizes que surgirão no cenário. Aprender a conhecer um pouco mais o que nos cerca, para que nós possamos ser os agentes da mudança, e não a fatalidade do erro. E considerar o erro como uma possibilidade ainda não pensada, que deve ser relevada ou combatida, dependendo da interferência. E rir, abstrair, transformar a nossa vida em uma estrutura mais fluida e volátil, para que possamos penetrar em outros espaços de possibilidades.

Comentários

MCururu disse…
Ao ler seu artigo houve a falta de fonecimento de energia no bairro. Acho que Murphy foi invocado para comprovar mais uma vez sua Lei.
Claudia disse…
Claro que, anos depois e tendo publicado a postagem, localizo a publicação na revista...
Eis o link: http://pt.calameo.com/read/0003469664caa80a9294e

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