O tempo e a cidade

“A cidade não se funda, se forma.”
(Giulio Carlo Argan)


Qualquer cidade, mesmo as ditas planejadas, cuja data de inauguração é festejada, atende à afirmação anterior de Argan . Estas conjugam o verbo formar no mesmo sentido que o artista – desenhista, pintor, escultor – trabalha a matéria prima ou suporte, dando-lhe a forma, atendendo ao programa de necessidades (concretas e subjetivas) e aos desejos estéticos pessoais, de forma autoral. Ao responsável pelo planejamento de uma cidade, sempre são computados os créditos e débitos de sua criação: a história lhe garantiu o registro e o traçado da cidade passa a ser sua assinatura. Lúcio Costa fez Brasília, moldou-a, deu-lhe a forma e, como Michelangelo a Davi, gritou: “cidade, viva!”. E num lance divino, a cidade passou a ter vida, e ruas, e pessoas. E o espaço, por deliberação do traço do artista, passou a ter significado. O artista o quis assim. O homem criou a cidade. E outros artistas dotaram Brasília de belas obras, dentro do estilo ideológico-urbanístico modernista, de acordo com a necessidade de cada espaço, ressignificando-o: Oscar Niemeyer, Portinari, Bruno Giorgi, Alfredo Ceschiatti, Athos Bulcão. E, em homenagem aos líderes políticos (que em vida, muito se promoveram com o fato político da construção da cidade) mandam-se erguer memoriais, instalam-se esculturas com seus bustos, seus rostos, seus nomes. No mais completo espírito, de ruptura com o historicismo, do Modernismo, ou criando uma nova história.
Mas não esqueçamos que a afirmação de Argan vale também para as cidades de desenvolvimento histórico. Aquelas que surgiram a partir de uma aldeia, ou de uma bateria fortificada, e que, por situarem-se em eixo de importante circulação, começaram a desenvolver seu comércio, indústrias de apoio às suas atividades e, com isto, passaram a atrair mais gente para morar em seu entorno. E assim foram crescendo, desenvolvendo outras atividades, por conta de recursos que havia em áreas mais remotas do entorno. Torna-se uma cidade, com suas estruturas administrativas, que buscam dar àquele espaço, outrora rural, ares dignos do projeto de cidade que intencionam. Ruas são alargadas para atenderem ao fluxo de carros, os ricos empresários da região constroem seus palacetes; os líderes políticos, além de buscarem construir palacetes ainda mais suntuosos, articulam auto-homenagens para fortalecer seus discursos políticos; constroem a cidade de seus planos e enfeitam-lhe como se fossem (e de fato são) a sua casa.
O vínculo da cidade com a construção cultural vem desde as discussões teóricas do século XIX, com Augustus Pugin (1812-1852), John Ruskin (1818-1900), William Moris (1834-1896), que, em oposição ao pré-urbanismo progressista formaram as bases do pensamento da cidade. Já no século XX, em oposição aos modelos positivistas e progressistas de Walter Gropius (1883-1969), Le Corbusier (1887-1965) entre outros, temos a visão cultural e ecológica da cidade, com Camillo Sitte (1843-1903), Frank Lloyd Wright (1869-1959), Lewis Mumford (1895-1990’), Kevin Lynch (1918), dando nova perspectiva às cidades .
A cidade se forma segundo a vontade dos homens, sejam eles seus planejadores, seus moradores ou seus administradores. Se pintamos a fachada humilde de nossa casa, queremos mostrar aos vizinhos e à cidade que, embora simples, ela é bonita e deve ser notada ou, ao menos, queremos ter orgulho por tê-la com aspecto novo por mais um tempo. Mesmo em escala mínima, interferimos na cidade: quer sejamos ativos militantes da luta social, quer, simplesmente, nos aborreçamos com o filho do vizinho, queremos que algo mude na nossa relação com o entorno. Da mesma forma, elegemos nossos MARCOS significantes na cidade, que tanto pode ser um conjunto escultórico quanto uma paisagem, ou ainda a velha casa onde se viveu desde a infância. E zelamos por estas memórias, a conservamos. Ou ainda, podemos não nos relacionar, por não achar sentido em nenhuma das coisas que vê – não se identificar com elas – e buscarmos dar à cidade a cara que nos represente: fazermos o projeto da nossa casa segundo nossos padrões, sonharmos com um jardim na praça abandonada do nosso conjunto habitacional, executarmos uma escultura para ser posta num espaço público, picharmos com nosso sinal a cidade, modificarmos a fachada de um edifício histórico.
Enfim, não podemos negar a nossa participação ativa na configuração da cidade. Ela não é fruto apenas da vontade e ação dos órgãos gestores, políticos e técnicos, mas também pela tomada de atitude de cada um dos agentes da cidade, o que inclui os cidadãos, como veremos quando discutirmos a semiótica no contexto da cidade. O olhar atencioso por aquele MARCO que lhe remete lembranças, permite que qualquer dano lhe seja notado. Posicionar-se em relação às suas referências (e preferências) é construir a cidade da forma de nossos desejos.

(Trecho retirado da monografia "Marcos do Tempo", 2005)

Comentários

Postagens mais visitadas