Paulicéia, meus amores e rancores

Como boa carioca de origem que sou, tenho meus ciúmes culturalmente construídos em relação à cidade de São Paulo. Algo como um amor mal-resolvido, uma admiração inconfessável, uma inveja de ter nascido no paraíso, vendo pela janela ponteaérica a beleza da cidade viva e real.
Não consigo entender São Paulo: meu pai morou lá a trabalho, estive algumas centenas de vezes a passeio e, mesmo com minha noção geográfica e espacial boa, ainda me perderia se me jogassem em qualquer lugar da cidade. Na verdade, não sei se a cidade não tem referências [pelo menos não tão claras e didáticas quanto o Rio de Janeiro: a orla, a Serra da Tijuca, o Cristo, Pão de Açúcar, a linha do trem...] ou eu não as quis construir. É um despeito assumido, porque, entre as cidades em que sonho estar e viver nos próximos anos, certamente está São Paulo.

Mas, como outras situações na vida, a rudeza e sinceridade da cidade, sendo o que é, me fascina e assusta. Sim, já passei por constrangimentos em São Paulo por não ser identificada como uma paulistana. Não sei se nesse momento confesso um sentimento masoquista ou uma submissão a algo realmente maior que eu, mas admito que esse nada-ser me atrai com um desejo de me superar nesse mar-sem-mar.
Amo Lina e Pietro Maria Bardi, Oswald e Mário de Andrade, Augusto e Haroldo de Campos, Décio Pignatari, Alfredo Volpi, Rita Lee, Sandroni, Tatit e Grupo Rumo, pizza, pastel de feira e caldo de cana!
Agradeço imensamente ao "não-paulistano" Renato Gimenez por me lembrar de meu rancor inebriante.

"Eu insulto o burguês! O burguês-níquel
O burguês-burguês!
A digestão bem-feita de São Paulo!
O homem-curva! O homem-nádegas!
O homem que sendo francês, brasileiro, italiano,
é sempre um cauteloso pouco-a-pouco!

Eu insulto as aristocracias cautelosas!
Os barões lampiões! Os condes Joões! Os duques zurros!
Que vivem dentro de muros sem pulos,
e gemem sangue de alguns mil-réis fracos
para dizerem que as filhas da senhora falam o francês
e tocam os "Printemps" com as unhas!

Eu insulto o burguês-funesto!
O indigesto feijão com toucinho, dono das tradições!
Fora os que algarismam os amanhãs!
Olha a vida dos nossos setembros!
Fará Sol? Choverá? Arlequinal!
Mas à chuva dos rosais
o êxtase fará sempre Sol!

Morte à gordura!
Morte às adiposidades cerebrais!
Morte ao burguês-mensal!
Ao burguês-cinema! Ao burguês-tiburi!
Padaria Suíssa! Morte viva ao Adriano!
"— Ai, filha, que te darei pelos teus anos?
— Um colar... — Conto e quinhentos!!!
Más nós morremos de fome!"

Come! Come-te a ti mesmo, oh! gelatina pasma!
Oh! purée de batatas morais!
Oh! cabelos nas ventas! Oh! carecas!
Ódio aos temperamentos regulares!
Ódio aos relógios musculares! Morte à infâmia!
Ódio à soma! Ódio aos secos e molhados
Ódio aos sem desfalecimentos nem arrependimentos,
sempiternamente as mesmices convencionais!
De mãos nas costas! Marco eu o compasso! Eia!
Dois a dois! Primeira posição! Marcha!
Todos para a Central do meu rancor inebriante!

Ódio e insulto! Ódio e raiva! Ódio e mais ódio!
Morte ao burguês de giolhos,
cheirando religião e que não crê em Deus!
Ódio vermelho! Ódio fecundo! Ódio cíclico!
Ódio fundamento, sem perdão!

Fora! Fu! Fora o bom burguês!..."


(Ode ao Bruguês - Mário de Andrade)

Comentários

Unknown disse…
rsrs... Há alguns meses tive a oportunidade de conhecer São Paulo. E, rsrs.., sinceramente, perdi totalmente a noção de espaço-tempo-rumo-etc., não que a cidade não tenha sinalização (por onde andei, estava bem indicado), mas é uma cidade tão grande que fica difícil decorar cada canto de rua. rsrs... Mas São Paula é linda. Tenho vontade de voltar lá para estudar.

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