Destombamento - resgate de uma opinião

"Caríssima Vera:

O e-mail sobre os destombamentos no Brasil é, simplesmente contrangedor. Se a destruição, a vandalização, o roubo, são absolutamente condenáveis, os actos jurídicos de desprotecção ao património, neste caso, expressos pelo destombamento, são inqualificáveis, uma vez que resultam de actos por parte do próprio Estado, que é suposto, sobretudo num regime democrático, defender o colectivo de todos os cidadãos e das estruturas sociais, culturais, económicas, etc, de um país.

Sem dúvida alguma que podemos registar dois níveis de motivações para a destruição do património cultural: o que eu chamaria de "pequeno nível", relacionado sobretudo com a ignorância, que leva a valorizar o progresso como aquisição consumista, cada vez mais acentuada de bens e "coisas novas", com a cobiça pequena de arranjo de materiais de construção, enfim, esse mundo de pequenos-nadas, tão bem expresso no admirável flme de Fellini (se não estou em erro), "Feios, Porcos e Maus".

O outro nível, que apelido de "grande nível", já é outra coisa, pela sua dimensão.

Aqui podemos englobar a destruição do património quando por detrás de essa destruição se encontram as investidas dos grandes grupos económicos, promotores imobiliários, políticos, etc., e o roubo de obras de arte, um ramo de "negócio" bem lucrativo, que movimenta quantidades de dinheiro equivalentes às do tráfico de droga ou de automóveis roubados. Basta dizer, e sei que não lhe estou a dar novidade nenhuma, que uns 99% dos roubos de obras de arte respondem a encomendas prévias e que esses bens roubados circulam a uma velocidade vertiginosa.

A título de exemplo, segundo dados da Polícia Judiciária portuguesa, há casos de bens artísticos de grandes dimensões, como retábulos de capelas, que em menos de 48 horas, são levados desde o seu local de origem, em Portugal, até mercados como o de Paris, a 3000 km de distância e passando por entre duas a quatro possíveis controlos alfandegários.

Certamente que com a criação do espaço da União Europeia e a abolição das fronteiras internas entre Estados, esta circulação se torna mais fácil, demasiadamente fácil, pelo que foi criada uma rede interna europeia de comunicação rápida de dados, neste campo, entre as diversas forças policiais. No entanto, no caso português, a Polícia Judiciária só conta com um departamento de roubo de arte para cobrir todo o território nacional e que, até bem recentemente, digamos que um ou dois anos, tinha um efectivo de...quatro agentes investigadores!!! Bonito, não é? Pois.

Mas há outra questão que me parece merecer uma reflexão e isto já não falando dos casos de roubo e pilhagem: porquê o desinteresse da comunidade pela conservação desse património? Até que ponto que, de facto, a comunidade científica e museológica é reflectida na comunidade "popular"?

A ver se me consigo aclarar: se a comunidade "popular", o povo e o seu reflexo nas forças políticas, através da eleição dos autarcas, por exemplo, está alheado da conservação e preservação do património, será legítimo questionar se, do ponto de vista "emic" (no conceito defendido pelo antropólogo Marvin Harris: visão interna da comunidade sobre os fenómenos culturais que desempenha e que se opõe ao conceito "etic" a visão desses mesmos fenómenos a partir de forma da comunidade que os vive) o interesse da comunidade "popular" e, eventualmente até da comunidade "económica e especulativa", mas sobretudo da "popular", continua a coincidir com o interesse da comunidade científica e museológica? Isto é, se o discurso da comunidade científica e museológica não se tornou num estéril jorrar de palavras e praxis de élites, afastada do sentimento popular, que não chega a alcançar os significados, desinteressando-se dos assuntos.(grifo nosso)

Claro que aqui entramos num velho debate: deve a ciência ter uma linguagem hermética, fechada ao comum dos mortais, ou, pelo contrário, deve usar uma linguagem clara, intelegível ao homem comum. Quando atrás da ciência se escondem projectos de poder, o que acarreta ao mesmo tempo o medo de se perder esse poder, a tendência é para o hermetismo, o que leva, como que num círculo vicioso, ao afastamento da sociedade científica da sociedade, tornando-se um modelo teórico fechado, possivelmente muito bem construído, que certamente trará muitos proveitos imediatos aos detentores das chaves de interpretação dessa meta-linguagem mas sem qualquer expressão prática e de benefício para o comum dos cidadãos.

Claro que existe sempre uma tensão entre a sociedade e o Estado, o que leva por vezes a falar-se de uma sociedade contra o Estado. Quando as acções do Estado, ou seja dos detentores do poder político dentro do Estado, não coincidem com a vontade da comunidade, então esta terá que fazer apelo à sua consciência cívica e se mobilizar em acções de denúncia e resistência. E isso acontece? Isso acontece com a maioria dos cidadãos ou apenas com um pequeno número de pessoas mais, pelo menos, bem informadas que o grosso do "povão"? Que capacidade de mobilização? Me lembro que quando foi o impeachement (será assim que se escreve?) sobre Color de Mello, houve uma mobilização geral e extremamente forte da sociedade civil que forçou à demissão presidencial (ou pelo menos foi essa a imagem que os media trouxeram até nós). Agora, um destombamento terá a força para uma mobilização semelhante, um terço menor, metade menor,... um décimo menor?

Este é o ponto que deixo à reflexão e discussão.

Um abraço
João Falcão-Machado"

Fonte: Arquivos LIIB-ICOMOS

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