Marcos em Belém

“As ruas desse lugar conhecem bem
as noites longas, as noites pálidas quando eu te procurava.
As casas desse lugar se lembrarão
do nosso abraço, da sombra insólita, espelho azul no chão.
As ruas desse lugar, agora eu sei,
sempre escutaram a nossa música quando eu te respirava.
As pedras municipais se impregnaram
da dupla imagem, da dupla solidão,
a sombra ali no chão.”
(Samuel Rosa e Chico Amaral)


Uma das primeiras visões de Belém que ficaram gravadas na retina foi o Cemitério da Soledade. Sua franqueza em exposição no centro da cidade, com seus volumes e formas, espaços e ausências. Marco indelével de um tempo, ao mesmo tempo passado e presente na sua permanência no espaço urbano como referencial físico. Transparente e contido em seu gradil pesado, trazido da Inglaterra, deixando-se ver o acervo escultórico associado a mausoléus e tumbas, por tantos estudado e com tanto a se conhecer. Curioso perceber a atração que se tem pelo conjunto da Soledade, embora traga em si o estigma do cemitério.
Foi através da observação constante, a cada passar no ônibus, que se foi fortalecendo a sensação clara da riqueza dos detalhes de Belém. Como autêntico estrangeiro, a observação, cada vez mais de perto dos detalhes que se apresentavam na cidade: azulejos, ladrilhos, platibandas, incisões e maltratos no acervo histórico de Belém. Foi neste exercício que, um dia, a inscrição Fundição Cavina na base de uma bela escultura em bronze apresentou-se. Este pequeno detalhe foi revelador, remetendo a um passado onde, no Rio de Janeiro, freqüentemente, também passando de ônibus, observava um grande edifício em alvenaria de tijolos maciços que se projetava imponente no bairro do Lins de Vasconcelos, com letras de bronze na platibanda - “FUNDIÇÃO CAVINA” -, enigma revelado tão longe...
Foi então que, aqui em Belém, este referencial de toda uma vida assumiu sentido concreto e contextual, passando a ser claro o seu aspecto de construção industrial e sua qualidade plástica; sua dimensão e imponência eram reflexo da importância real dentro de um determinado recorte do contexto social, econômico e temporal; seu abandono e decadência, que foram acompanhados no passar ligeiro a caminho do trabalho ou da universidade, diziam respeito unicamente às mudanças no conceito de arte da modernidade. A Fundição Cavina não existe mais como tal, mas o seu edifício permanece lá, sendo utilizado como habitação e comércio local. Um sentimento de perda de algo, impalpável e inexplicável, semelhante à recepção da notícia de roubo ou dano a um busto em Belém, ou de um edifício que cai.
(...)
Compreender a trajetória histórica de Belém garantiria revelar aspectos que justificariam a presença física de marcos históricos na cidade. Não o reducionismo simplório de que Belém é expressa esteticamente a partir de imagens do ciclo econômico da borracha, como faz crer o senso comum, mas identificar nos MARCOS DO TEMPO a imagem das várias cidades de Belém que se sobrepõem. Algumas hipóteses foram levantadas e devem ser averiguadas como a de que o elemento fálico contíguo ao Palácio Velho, assim como outro semelhante localizado no bairro do Marco, em frente à atual faculdade de medicina da Universidade Estadual do Pará, seriam, de fato, marcos delimitadores da primeira légua patrimonial, construídos em substituição ao primeiro, executado em madeira, que o tempo consumiu. Também, visualizando o percurso da história da cidade de Belém, verificamos que o desaparecimento dos MARCOS DO TEMPO não é atributo exclusivo do nosso tempo.
Nos perdemos no vaguear pela cidade, a observar e registrar histórias, tantas e desarticuladas. Neste universo de informações, começamos a questionar a validade de colecionar informações, se tantas outras mais importantes se apresentavam à discussão. Os textos foram surgindo, como os MARCOS DO TEMPO em Belém, de forma inesperada e precisa, caótica e reveladora. Mais uma vez, no meio de um emaranhado de informações surge “Além dos Mapas” de Cristina Freire a indicar os descaminhos a seguir: afirmar a invisibilidade proposta por Lourenço no inventário do CPC/USP, nossa referência básica.
O exercício teórico visou, durante todo o trabalho, compreender a dinâmica de destruição destes bens, tão cultural quanto a sua preservação. Compreender o campo de forças que se estabelece para que, conscientes das regras dos vários jogos que se entrelaçam neste contexto, possamos, como agentes culturais, interferir efetivamente neste cenário.
Buscamos esclarecer o motivo do surgimento destes MARCOS DO TEMPO na cidade, vislumbrando as tensões que se estabelecem, quer sob o prisma da Semiótica da Cultura (com Iuri Lotman), quer no prisma historicista (com Argan e Certeau), mediado pela compreensão das mudanças das visões de cidade que se estabeleceram ao longo destes quase quatro séculos. Sempre no caminho de justificar a necessidade de defesa do patrimônio cultural expresso neste acervo, visualizamos que a preservação é apenas um dos elementos, devendo ser tratada de forma ampla, comungando do pensamento de Freire: “Preservar significa, antes de tudo, reapropriar-se, resgatar um sentido, às vezes ininteligível, que nos amarra ao mundo, um fio de Ariadne no labirinto. Por outro lado, a aceleração do tempo traz à reboque a perda das possibilidades de reconhecimento, como uma forma de estranhamento às permanências”[1]. Não se caracteriza como uma oposição, mas um sistema dinâmico ao qual todos estamos inseridos e precisamos conjugar para nossa própria sobrevivência. Defender o passado histórico como referência não se trata de uma postura reacionária, mas de estratégia de sobrevivência no presente e no futuro. “O que fica dos objetos e lugares que conhecemos são marcas, sinais, vestígios e seu desaparecimento cria lacunas, afasias em nosso repertório, imagens que oscilam entre uma vaga recordação e o absoluto esquecimento”[2].
O que nos diz a ausência de um MARCO DO TEMPO como o Monumento à Memória, primeiro monumento de Belém, segundo Ernesto Cruz? Será que, por mais que possamos saber sobre ele, as informações precisas serão igualmente precisas sobre o que ele diria a nós? Certamente, sem uma verdadeira sensibilização, ou melhor, instigação ou provocação (como proposto no princípio do trabalho) não poderemos buscar assimilar o real valor deste ou de qualquer patrimônio cultural: aquilo que nos diz como indivíduos e como coletivo, e nos situarmos no espaço múltiplo da cidade como elemento dinâmico e transformador. Sem retornarmos ao mesmo ponto, não podemos nos furtar de insistir na necessidade do inventário. Ele nos ajudará a construir articulações e a conhecer o que de hermético existe em cada pedra e bronze. Esperamos ter contribuído com as informações coletadas e que serão disponibilizadas ao Departamento de Patrimônio Histórico da Fundação Cultural do Município de Belém. Porém acreditamos que estas informações necessitariam de um formato mais dinâmico, como busca ser o site Lisboa Abandonada, ou outro formato que o tempo de produção deste trabalho, ou o necessário à conclusão de todas as pesquisas sobre o acervo, julgue mais apropriado para estabelecer uma relação no ritmo de nossa civilização. Um lugar onde possam ser inseridas informações históricas, relatos, atualização de dados, discussões e pesquisas, para livre acesso. Algum lugar, virtual ou concreto, onde a cultura tenha espaço e que os MARCOS DO TEMPO possam ajudar a fazer-nos compreender um pouco do nosso papel na cidade de Belém, para, quem sabe um dia, assimilarmos nossa realidade sem intermediações intelectuais ou de meios, descobrirmos nossas próprias referências, deixando-nos fluir e interferir no espaço que é de todos. Assumirmos o papel de agentes construtores da nossa realidade e criarmos os MARCOS DO TEMPO.
[1] FREIRE, Op. Cit., p.304. [2] Idem, Ibidem, p.303.

(Trecho retirado da monografia "Marcos do Tempo", 2005)

Comentários

Fabio Fernandes disse…
"Marcos do Tempo" é a sua monografia? Deu uma vontade de ler...

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