Jesuítas e seus santos

A presença jesuítica no Brasil deixou contribuições fundamentais, até a expulsão da Ordem, em 1759. Segundo o Padre Ilário Govoni SJ, foram os jesuítas da Amazônia que, por sua competência na gestão de suas posses, mais provocaram a desconfiança de que o processo catequético era a tentativa de criar um "poder paralelo" capaz de rivalizar à Corte Portuguesa e seus representantes. Fato é que os Jesuítas foram capazes de grandes feitos, tanto na conquista do território, quanto no processo de comunicação com os nativos povos e, consequentemente, na domesticação da natureza hostil, grande eficiência econômica, mas não só. Os "Doutores da Igreja" tinham o domínio do conhecimento proporcional ao esforço por difundi-lo e, assim como estabeleceram fazendas e missões, também pontuaram os colégios onde o ensino filosófico e prático eram trabalhados com o objetivo de esculpir na matéria bruta da alma selvagem, novos homens.
"O Rio Maranhão ou Rio Amazonas com a Missão da Companhia de Jesus", de Pe. Samuel Fritz, 1707


“Os que andastes pelo mundo, e entrastes em casas de prazer de príncipes, veríeis naqueles quadros e naquelas ruas dos jardins dois gêneros de estátuas muito diferentes, umas de mármore, outras de murta. A estátua de mármore custa muito a fazer, pela dureza e resistência da matéria; mas, depois de feita uma vez, não é necessário que lhe ponham mais a mão: sempre conserva e sustenta a mesma figura; a estátua de murta é mais fácil de formar, pela facilidade com que se dobram os ramos, mas é necessário andar sempre reformando e trabalhando nela, para que se conserve. Se deixa o jardineiro de assistir, em quatro dias sai um ramo que lhe atravessa os olhos, sai outro que lhe descompõe as orelhas, saem dois que de cinco dedos lhe fazem sete, e o que pouco antes era homem, já é uma confusão verde de murtas. Eis aqui a diferença que há entre umas nações e outras na doutrina da fé. Há umas nações naturalmente duras, tenazes e constantes, as quais dificultosamente recebem a fé e deixam os erros de seus antepassados; resistem com as armas, duvidam com o entendimento, repugnam com a vontade, cerram-se, teimam, argumentam, replicam, dão grande trabalho até se renderem; mas, uma vez rendidos, uma vez que receberam a fé, ficam nela firmes e constantes, como estátuas de mármore: não é necessário trabalhar mais com elas. Há outras nações, pelo contrário — e estas são as do Brasil —, que recebem tudo o que lhes ensinam, com grande docilidade e facilidade, sem argumentar, sem replicar, sem duvidar, sem resistir; mas são estátuas de murta que, em levantando a mão e a tesoura o jardineiro, logo perdem a nova figura, e tornam à bruteza antiga e natural, e a ser mato como dantes eram. É necessário que assista sempre a estas estátuas o mestre delas: uma vez, que lhes corte o que vicejam os olhos, para que creiam o que não vêem; outra vez, que lhes cerceie o que vicejam as orelhas, para que não dêem ouvidos às fábulas de seus antepassados; outra vez, que lhes decepe o que vicejam as mãos e os pés, para que se abstenham das ações e costumes bárbaros da gentilidade. E só desta maneira, trabalhando sempre contra a natureza do tronco e humor das raízes, se pode conservar nestas plantas rudes a forma não natural, e compostura dos ramos.”

Pe. António Vieira

Fragmento do Sermão do Espírito Santo, capítulo III (1657)
Em matéria menos rude que a alma humana, também os jesuítas trabalharam a madeira na produção de imaginária - imagens de santos - através das oficinas associadas a seus colégios. Belém, como todos sabem, possuiu um dos poucos do Brasil - o Colégio de Santo Alexandre, contíguo à Igreja de São Francisco Xavier (que hoje é conhecida como "Igreja de Santo Alexandre", no bairro da Cidade Velha). Sobre a imaginária colonial muito se tem estudado, porém não sobre a produção na Amazônia nem tampouco analisando aspectos estilísticos e de filiação. 
Desta forma, a dissertação de mestrado de Iaci Iara Cordovil de Melo, intitulada Imaginária em colégios, fazendas e missões jesuíticas no nordeste paraensevem dar uma contribuição fundamental para, através da interpretação da imaginária remanescente das oficinas jesuíticas na região nordeste do Pará, compreender essa produção artística com traço único e próprio.
Iaci já havia se debruçado sobre o estudo dos retábulos da "Igreja de Santo Alexandre", onde levanta questões sobre discursos repetidos à exaustão, baseando-se em análises estilísticas e dados documentais: isso é pesquisa. Afinal, as estátuas de murta são fáceis, mas são as árduas esculturas em pedra que resistem ao tempo.
Não é um trabalho sobre os santos jesuíticos, mas da produção da imaginária jesuítica, sob o prisma da História da Arte, trazendo dupla contribuição: o legado jesuítico e a pesquisa de fôlego de Iaci Iara de Melo, que visitou inúmeras igrejas da região (e fez a amiga que vos fala fotografar algumas mais e se apaixonar por seu tema). Como ela mesma diz: se vivesse duzentos anos, não esgotaria o universo rico que se descortina a cada passo. Vale a pena conhecer esse infinito particular da dissertação e iniciar essa cartografia desvelada em seu texto.

SOBRE O TRABALHO:

"Este trabalho trata da escultura existente em antigas igrejas e capelas jesuíticas do nordeste paraense, como testemunho da evangelização no norte do Brasil Colônia. São apresentadas as bases estruturantes da Companhia de Jesus, que geraram expressões iconográficas, bem como as transposições das invocações da Europa para o Pará, análises estilísticas e formais sendo observadas obras doadas)compradas e confeccionadas nas oficinas do colégio, sob a orientação de qualificados padres e irmãos europeus junto a mestres de obras e oficiais mecânicos, formados na região a partir da mão de obra disponível"

Mais informações, inclusive o download da dissertação AQUI

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